O inferno verde, por Flávio Tavares*
Houve tempos em que víamos as árvores e os bosques como estorvo. A Amazônia era “o inferno verde” e a chamávamos assim pelos quatro cantos do mundo, com orgulho e desdém. Afinal, éramos donos daquele inferno sem fogo (em que chovia ao final de todas as tardes) e o oferecíamos para transformá-lo pelo menos em purgatório, onde o verde purgasse o pecado de ser verde.
Em 1970, na ditadura Médici, “o inferno verde” começou a ser atacado. Em nome da “expansão das fronteiras agrícolas”, dezenas de etnias indígenas foram dizimadas. Contaminadas com sarampo e varíola pelos “civilizados” vindos do centro e do Sul, crianças e idosos morriam como insetos, num genocídio que a própria selva ocultou. Parecíamos a pequena Holanda, onde não havia terras cultiváveis e, para plantar batatas, foi preciso aterrar o mar.
Em 1971, o coronel Costa Cavalcanti, ministro de Minas e Energia do Brasil, assombrou a Conferência Mundial de Meio Ambiente, em Estocolmo, ao exclamar: “Nós queremos importar poluição”.
Naquele tempo de imprensa sob controle, tanta foi a destruição, que, dentro do governo, Paulo Nogueira Neto, chefe da desconhecida secretaria de Meio Ambiente, decidiu agir para o futuro. O Código Florestal de 1934 fora refeito em 1965 (no período brando da ditadura Castelo Branco), e Nogueira Neto instituiu o Conselho Nacional de Meio Ambiente e criou as áreas de preservação ambiental. Tudo em silêncio, sem suspeitarem que ele protegia “o inferno verde”...
Agora, a Câmara dos Deputados reinstala a visão do “inferno verde”, ao aprovar as alterações ao Código Florestal redigidas pelo deputado Aldo Rebelo, do PC do B. E para não haver dúvida, uma emenda do sempre onipresente PMDB isentou de multas e culpas quem já tenha desmatado: a lei retroage para beneficiar a quem não cumpriu a lei. E, em plena democracia, os deputados debilitam os poderes do Conselho Nacional de Meio Ambiente instituídos na ditadura...
“Esta emenda é uma vergonha”, disse a presidenta Dilma Rousseff, que se propõe a vetá-la para impedir que se transforme em lei. Os 10 ministros do Meio Ambiente dos últimos 30 anos (integrantes de governos e partidos diferentes) apoiam a presidente. José Lutzenberger já não está entre nós e não opinou, mas sabemos o que diria. Lembram-se quando nosso Lutz (no governo Collor) recusou com palavrões os milhões do Banco Mundial para “modernizar” o corte de madeira na Amazônia?
Em 1932, o gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil, ministro da Agricultura do governo provisório de Getúlio, fez os rascunhos do Código Florestal, aprovado em 1934. Oitenta anos atrás, esse homem lúcido (sempre à frente do seu tempo) viu o que muitos não veem agora. Doublé de intelectual e homem do campo, numa época em que nem se conheciam os termos “ecologia” e “meio ambiente”, ele entendeu que a agricultura e a pecuária eram extensão humana da natureza e, como tal, não podiam degradá-la. Foi a primeira tentativa de preservar rios, restingas, mananciais, encostas de morros e mata nativa, antes ainda das grandes erosões e deslizamentos.
Com o código (e suas alterações), nos tornamos potência agrícola e exportamos alimentos para o mundo inteiro, mesmo comendo pão de trigo estrangeiro. Agora, argumenta-se que o código deve ser mudado porque o número de infratores é enorme e cresce a cada dia!!
Aplicada ao cotidiano, seria como anistiar os assaltantes de rua (ou os corruptos), que crescem a cada dia também. Que mais cores terá o inferno verde?