- Eduardo Galeano
Publicação original: Terra Magazine (clique aqui)
Texto publicado no Blog em 29 de outubro de 2007:
As ruas-túneis de Porto Alegre
Este excelente texto de Amilcar Bettega foi publicado no Terra Magazine em 30 de maio de 2007.
Sua postagem aqui no Blog, foi autorizada pelo autor e pelo Terra Magazine.
Sua postagem aqui no Blog, foi autorizada pelo autor e pelo Terra Magazine.
As ruas-túneis de Porto Alegre
Quarta, 30 de maio de 2007
Amilcar Bettega
E
tem dessas ruas, verdadeiros túneis verdes onde a luz do final da tarde
se infiltra por entre as folhas e enche o interior do túnel de um
amarelo espesso, carregado de inúmeras partículas de composição
desconhecida que dão ao ar o aspecto de uma poeira vegetal descendo sem
peso dos galhos das árvores.
De repente você vira
numa esquina e se vê na extremidade de um desses túneis. Olhá-lo desse
ponto é como ver materializada a imagem da paz. As árvores que crescem
nas duas calçadas unem suas copas mais ou menos à altura do terceiro
andar dos edifícios - também eles alinhados, mas no exterior do túnel -,
criando esse espaço particular protegido da luz direta do sol.
Caminhar
no interior de um desses túneis é como entrar num cenário de sonho.
Alguma coisa ali escapa do real. As cores não são as mesmas com as quais
nos deparamos todos os dias. O amarelo - eu insisto, talvez numa
tentativa de melhor apreendê-lo - é denso, quase palpável, uma grande
massa gasosa que se forma quando a luz incisiva, cristalina, quase
branca do sol passa com esforço através da camada verde de folhas e
galhos e cipós que pendem preguiçosamente em alguns pontos.
Mesmo
se por acaso faz frio, a sensação que essa luz amarelada transmite é de
calor, de algo que envelopa por inteiro cada centímetro quadrado de
qualquer corpo, vivo ou não, que se encontre mergulhado em seu interior.
Não
tenho dúvida de que as percepções igualmente oníricas do espaço e do
tempo no interior do túnel decorrem dessa massa de luz amarelada, o
elemento principal do túnel, a sua substância. Quanto mais inclinado
estiver o sol lá fora, quanto mais a tarde avança, mais denso será o
amarelo, tendendo um pouco para o laranja antes de se evaporar nos dois
ou três minutos que precedem o abraço repentino da noite.
Mover-se
nesse espaço significa encontrar o ritmo exato da respiração do túnel.
Estamos ali como que imersos em algo que não é nem líquido nem gás mas
um estado intermediário, um estado que exige lentidão de movimentos e
certo recolhimento parecido ao que experimentamos percorrendo a nave de
uma imponente catedral. A abóboda de galhos e folhas alonga o espaço
para o alto sem interrompê-lo de forma brusca, criando uma espécie de
teto difuso, descontínuo porque feito pela superposição de folhas e
ramos, mas compacto o suficiente para, primeiro, filtrar a luz que vem
do exterior e, segundo, para aprisionar o resíduo dessa filtragem, essa
espécie de luz-gás que infla o túnel como um balão comprido ou um imenso
pulmão ressoando ruídos urbanos.
Tais ruídos
também são particulares ali dentro, chegam também eles filtrados,
transformados, isolados, e o resultado é como se ouvíssemos de longe,
mas muito longe, os sons da cidade se movimentando logo ali fora, no
exterior do túnel.
(O canto dos pássaros, se a
hora for essa do fim da tarde ou de manhãzinha, mereceria um extenso
parágrafo à parte. Estando em uma posição especial, nem no interior nem
no exterior, mas na própria "parede" do túnel, os pássaros vão emitir
seu canto que será ouvido diferentemente conforme a posição do ouvinte.
Para quem está fora do túnel, o canto chega misturado aos sons agudos,
francos e múltiplos que a cidade manifesta a cada batimento do seu
coração; enquanto que no interior do túnel este mesmo canto reverbera
gravemente, destacado de todo e qualquer outro som, fazendo vibrar as
folhas das árvores que, por sua vez, emitem um rumor que é mais visto do
que ouvido, no reflexo tremido da luz contra as folhas).
Falamos
de uma cápsula, se quiserem, mas não uma cápsula estanque. Ao
contrário, tudo ali é permeabilidade, tudo está em diálogo contínuo com o
que existe à volta. A cidade, assim como a luz, entra no túnel através
dos seus poros, a cidade entra na rua, recolhe-se nesse espaço íntimo,
quase sagrado. E a percepção que se tem dela ali dentro é, e não poderia
ser diferente, mística. Ali tocamos a sua essência, todo o resto ficou
lá fora.
Inclusive o tempo.
Porque
parece ser impossível contar o tempo no interior do túnel. Impossível
se aperceber da sua passagem, mesmo sendo evidente que ele não está
paralisado. Apenas, talvez, seu andamento não seja uniforme, isto é,
alguns minutos são mais longos do que outros, uns têm mais do que
sessenta segundos outros menos, o que resulta numa marcha temporal que
se constrói por saltos: frações de tempo quantitativamente iguais se
sucedem gerando períodos que são sentidos como muito longos,
intercalados por outros muito curtos, fugazes instantes capazes de
abarcar toda uma jornada.
*
Pois
de repente você vira numa esquina e se vê na extremidade de uma dessas
ruas. Ao fundo, ela se espicha, espremida pela fila de árvores que
crescem nas calçadas. Do alto pendem os galhos plenos de verde e as
cordas de cipó cobertas de folhas.
Os cipós e a
abundância verde deixam claro que estamos perto do trópico. E o amarelo,
esse, creio estar relacionado a certa "meridionalidade" na proporção
exata para produzir efeitos de ótica rara a partir da mera incidência do
sol na copa das árvores.
Onde o sul e o trópico
flertam. Porto Alegre está justamente aí. Cheia desses túneis verdes,
cheia dessas ruas mágicas cobertas por uma abóboda de folhas e ramos de
árvores. Podemos encontrá-las facilmente no Bom Fim, na Floresta, mas
também no Moinhos de Vento e até em meio à platitude de São Geraldo.
Basta
deixar-se levar. Você vai por uma avenida central, barulhenta,
movimentada, e de repente, numa esquina, você olha para o lado e lá
está. Então não resta mais nada a fazer senão se enfiar por um desses
túneis. Sem saber onde nem quando você vai sair.
Amilcar Bettega é escritor, autor de O vôo da trapezista, Deixe o quarto como está e Os lados do círculo (livro vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira em 2005). Vive em Paris.