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Monumento a Garibaldi e Anita em Porto Alegre (1913) |
Garibaldi na América
do Sul
Yvonne Capuano
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Pesquisadora de História e escritora, autora
do livro De sonhos e Utopias –
Anita e Giuseppe Garibaldi, é graduada pela Escola
Paulista de Medicina
Chegada ao Brasil
O navio Nautonnier aproximou-se lentamente do porto
do Rio de Janeiro, destinado a embarcações mercantes,
em data imprecisa: fins de 1835, início de 1836. Trazia
a bordo um jovem italiano esperançoso que lutava pela
unificação da Itália e que fugira por
envolver-se em questões políticas. O idealista
era Giuseppe Garibaldi, revolucionário republicano
nascido em Nizza, Itália, em 4 de junho de 1807, cosmopolita
que sempre lutaria pela liberdade dos povos. Angelo Maria,
seu avô, e Domenico, seu pai, homens do mar, possibilitaram
ao jovem Giuseppe tornar-se marinheiro e comandante de navios.
Garibaldi, numa das viagens, no porto de Taganrog, encontrou-se
com Giovanni Battista Cuneo, marinheiro filiado à Jovem
Itália. Tratava-se de organização fundada
por Giuseppe Mazzini, que pregava: os povos que não
soubessem, pela energia do seu caráter, conquistar
a liberdade de pensamento, eram indignos de possuí-la.
Seu programa resumia-se na expressão Unidade e
República e sua divisa era Deus e povo,
pensamento e ação. Mazzini, genovês
nascido em 1805, exercia a profissão de advogado junto
aos menos afortunados e lutava para libertar a Itália
do jugo estrangeiro.
Quando Garibaldi decidiu entrar para o movimento, adotou o
cognome Borel. Envolvendo-se com Mazzini num levante,
foram delatados e condenados à morte, o que os obrigou
a fugir: Mazzini para Londres e Garibaldi para o Brasil.
Ao chegar, Garibaldi encontrou-se com Luigi Rossetti, que
o acolheu. Rossetti era de Gênova e fervoroso discípulo
de Mazzini, com quem havia fundado o jornal La Voce del
Popolo. Pelas mesmas razões – a difusão
de idéias políticas então consideradas
subversivas – viera foragido para o Brasil. Rossetti
era um homem culto, e aqui dedicou-se ao magistério,
de início, e ao comércio, mais tarde, o que
lhe permitiu condições financeiras para auxiliar
os companheiros que chegavam da Itália. Garibaldi passou
então a dedicar-se ao comércio de cabotagem
no litoral brasileiro, atividade que não se revelou
muito lucrativa.
|
Garibaldi por Oswaldo Teixeira |
Italianos na Revolução
Farroupilha
Em 20 de setembro de 1835, irrompera em Porto Alegre, Rio
Grande do Sul, a Revolução Farroupilha. Italianos
sonhadores associaram-se aos revolucionários, e entre
eles encontrava-se Tito Livio Zambecari, conde bolonhês
adepto de Mazzini. Em outubro do ano seguinte, Bento Gonçalves,
líder da revolução, foi vítima
da perseguição implacável dos imperiais,
que o levaram preso, junto com Zambeccari, para o Rio de Janeiro.
Enviados pela organização italiana Congrega
della Giovine, que se formara no Rio de Janeiro e reunia
italianos emigrados, Rossetti e Garibaldi visitaram Zambeccari
na prisão. Ficaram encantados com os relatos sobre
o movimento e resolveram aderir à causa. Começava
dessa forma a luta de Garibaldi na América do Sul.
Ao receberem do governo farrapo uma carta de corso, em maio
de 1837, Garibaldi e Rossetti lançaram-se ao oceano
em perseguição às embarcações
imperiais. O pequeno barco, a que deram o nome de Mazzini,
saiu do Rio de Janeiro com armas e munições,
embalado pelo entusiasmo e idealismo dos tripulantes:
“Finalmente éramos livres, navegávamos
debaixo de um pavilhão republicano; enfim éramos
corsários. Com dezesseis homens de equipagem e um navio,
éramos capazes de declarar a guerra a um império.
[...] O oceano pertencia-me e eu tomava posse do meu império.”(1)
Ações guerrilheiras
Durante a travessia aprisionaram duas embarcações:
a lancha Marimbondo e o navio Luísa.
A primeira continha poucos víveres e um escravo chamado
Antônio, que se ligou ao grupo e foi alforriado por
Garibaldi, embora isso não tivesse valor legal. A segunda,
carregada de café, pertencia ao austríaco Guilherm
Brohun e ao brasileiro Filipe Néri de Carvalho, e tinha
nove tripulantes: o comandante, o contramestre, quatro escravos,
um passageiro e dois marinheiros. Como não havia possibilidade
de Garibaldi comandar ao mesmo tempo as duas embarcações,
afundou o Mazzini e continuou com o Luísa,
de maior porte (2). Na altura da Província de Santa Catarina,
libertou a tripulação e ficou com os escravos
Luís, Pedro, Bentura e Manuel, que preferiram continuar
ao seu lado e também foram alforriados.
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1 GARIBALDI, 1907, pp. 46-47.
2 Alguns historiadores admitem que Garibaldi trocou o nome
Luísa por Mazzini, pelo qual passaremos a chamá-lo.
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Os portos do Rio Grande do Sul encontravam-se vigiados pelos
imperiais e Garibaldi não podia se arriscar. Continuou
navegando até o rio da Prata e atracou em Maldonado,
Uruguai. Ao chegar, tremulava no mastro a bandeira farroupilha,
desconhecida das autoridades, o que causou curiosidade e preocupação.
Rossetti partiu para Montevidéu à procura dos
amigos italianos, e Garibaldi esperou seu retorno, tentando
vender o café. A polícia marítima procurou
identificar o país de origem dos visitantes, mas nada
conseguiu. O navio permanecia no porto. As águas uruguaias,
constantemente invadidas por embarcações revolucionárias
que navegavam pelo rio da Prata, obrigavam os diplomatas brasileiros
a exigir do governo oriental uma constante vigilância.
O vice-cônsul do Brasil radicado em Maldonado, Juan
Manuel Acosta Pereyra, ao ser avisado sobre o navio ancorado,
informou o fato à capitania dos portos e exigiu a prisão
dos tripulantes.
Garibaldi zarpou sem Rossetti com destino a Punta de Jesús
y María, a aproximadamente setenta quilômetros
de Montevidéu. A chefia dos portos ordenou a captura
do Mazzini e, em cumprimento à intimação
feita pelo ministro da Guerra e da Marinha, enviou os navios
Maria e Loba no seu encalço. Garibaldi avistou do convés
as embarcações, mas não sabia se eram
amigas, pois não traziam bandeiras hasteadas; somente
quando se avizinharam é que o jovem italiano constatou
que vinham atacá-lo. A situação se complicou
quando vários tripulantes do navio inimigo conseguiram
passar para o Mazzini, cujo leme ficou desgovernado
com a morte de Fiorentino, encarregado das manobras. O próprio
Garibaldi foi atingido por uma bala na região do pescoço,
permanecendo inconsciente por algum tempo3. A luta continuou
por cerca de uma hora, sustentada por Luigi Carniglia, Pasquale
Lodola, Giovanni Lamberti e outros. Repentinamente, as embarcações
inimigas se afastaram, e em relatório oficial posterior
consta a informação de que o fizeram por falta
de munição.
Os amigos preocupavam-se com o estado de Garibaldi, que durante
dias, com séria lesão entre as vértebras
cervicais e a faringe, delirava de febre. Cuidado com desvelo
por Carniglia, a quem se ligou fielmente até o fim
da vida, recuperou aos poucos a saúde:
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3 Há controvérsias sobre o combate. Em relatório
oficial, o governo uruguaio afirma que o confronto deu-se
apenas com o lanchão Maria, e que somente no dia seguinte
o Loba partiu em direção a Punta de Jesús
y María.
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“Quando estava deitado no meu leito
de agonia, abandonado por todos e delirava com o
delírio da morte, era Luigi que sentado à cabeceira
do meu leito com a dedicação e paciência
de um anjo não se afastava de mim um instante senão
para ir chorar e ocultar as suas lágrimas [...]. Luigi
Carniglia era de Deiva, pequeno país do levante. Não
havia recebido instrução literária, mas
supria esta falta por um maravilhoso entendimento. Privado
de todos os conhecimentos náuticos que são necessários
aos pilotos, governava os navios até Gualeguay com
a sagacidade e felicidade de um piloto consumado.”4
Impedido de falar, Garibaldi apontou o rumo a seguir, sem
convicção. Sabia que em qualquer lugar em que
aportassem seriam aprisionados. Navegavam com rumo incerto,
em região desconhecida, hasteando uma bandeira de revolucionários.
Aproximaram-se da Província de Entre Ríos; ao
encontrarem a galeota Pinturesca, seu comandante,
dom Lucas Tantalo, comovido com o relato dos italianos, forneceu-lhes
víveres e socorreu Garibaldi.
A viagem continuou. Em 26 de junho o navio chegou a Gualeguay,
porto de Entre Ríos, onde Garibaldi procurou o governador,
Pascual Echagüe, e lhe entregou uma carta de recomendação
fornecida por dom Lucas. Constatando o precário estado
de saúde em que ele se encontrava, Echagüe enviou-o
ao seu médico particular, Ramon del Arca, que constatou
que a bala ficara alojada no pescoço, provocando-lhe
febre e dificuldade de deglutição.
Garibaldi escreveu a Giovanni Batista Cuneo, companheiro revolucionário,
que se encontrava em Montevidéu:
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4 GARIBALDI, 1907, p. 61.
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“Gualeguay, 1o de outubro de 1837.
Vamos às questões que o seu precioso coração
me manda. As minhas feridas estão quase curadas, assim
como a operação feita em minha nuca; aquela
maldita bala entrou sob a minha orelha esquerda e, depois
de ter atravessado diametralmente o pescoço, ficou
alojada no lado direito, a meia polegada da pele, e provocou
uma operação de quase meia hora que dava gosto,
principalmente quando o doutor afastava os tendões
nervosos entre os quais ela se alojara. A ferida do braço
direito foi muito leve; a bala somente havia passado de raspão.
Borel.”5
Juan Manuel Rosas, presidente da Argentina e das Províncias
Unidas do Rio da Prata, dominava Entre Ríos. Ao ser
informado da presença de Garibaldi em Gualeguay, enviou
a Echagüe ordem para prendê-lo. Confinado na residência
de dom Jacinto Andreu, tinha relativa liberdade, pois o governador
conhecia Bento Gonçalves e o movimento farroupilha.
O corsário italiano ficou seis meses com Andreu, que
lhe dedicou uma amizade sincera. Mas planejava a fuga, já
que o ócio não combinava com seu temperamento,
e o ideal era continuar lutando pelos povos. A oportunidade
surgiu quando Pascual Echagüe, chamado por Rosas a Buenos
Aires, foi substituído pelo comandante Leonardo Millán,
famoso pela violência de seus atos. Em noite de tempestade,
Garibaldi fugiu. Solicitou guia e cavalos, pois desejava alcançar
a residência de um inglês, dono de barco que o
levaria a Montevidéu para encontrar-se com Rossetti
e os amigos italianos. Mas o guia, depois de cavalgarem quase
oitenta quilômetros, o traiu nas proximidades da estância
de Ibicuy. Preso e amarrado pelas mãos e pés
ao cavalo, retornou a Gualeguay. Sua narrativa prossegue:
“Conduzido à presença de Leonardo
Millán, fui intimado por ele a deNúnciar quem
me havia fornecido os meios de efetuar a minha fuga. É
escusado dizer que não fiz tal confissão, pois
declarei que só eu a tinha arranjado e executado. Então,
como me achava imobilizado e Leonardo não tinha coisa
alguma a temer, aproximou-se de mim e começou a bater-me
nas faces com o chicote. Depois renovou as suas perguntas,
não sendo mais feliz que da primeira vez. Mandou-me
conduzir à prisão e disse em voz baixa algumas
palavras ao ouvido de um dos guardas. Estas palavras eram
a ordem de me aplicar a tortura.”6
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5 MARIO, 1884, p. 80.
6 GARIBALDI, 1907, pp. 64-67.
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Echagüe, ao voltar, informado do que sucedera,
enviou Garibaldi à Província de Bajada e, pouco
tempo depois, sem explicações, libertou-o. Livre,
ele embarcou num navio italiano até a desembocadura
do rio Paraná-Iguaçu, onde conseguiu outra condução
e chegou a Montevidéu. Escondeu-se na casa do italiano
Pesenti, pois ainda vigorava contra ele a ordem de prisão
emitida pelo combate que travara em Punta de Jesús
y María. Aproximadamente um mês depois, encontrou-se
com Rossetti e soube que ele, ao descer do navio e dirigir-se
a Montevidéu, foi perseguido pela polícia e
somente não foi preso porque um amigo o protegeu.
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Mapa do teatro de operações - 1839 |
Em Piratini
Em 15 de junho de 1838, Oribe renunciou, e os presos políticos
foram anistiados. Garibaldi e Rossetti prepararam-se para
retornar ao Brasil e juntar-se novamente aos farroupilhas,
defendendo os ideais que acreditavam ser iguais aos da Itália.
A viagem de retorno, difícil e cansativa, com cavalgadas
nas extensas planícies uruguaias, tornava-os ansiosos.
Ao alcançarem a fronteira do Brasil, avistaram pequenas
casas construídas ao pé da serra, cavaleiros
exímios e carretas puxadas por bois. Esperançosos,
procuraram a sede do governo farroupilha, que sabiam estar
instalada em Piratini. O local foi escolhido por vários
motivos: situava-se próximo ao rio Jaguarão,
o que em caso de invasão legalista os favoreceria na
retirada, e era um ponto central de difícil acesso.
Ao se aproximarem da sede do governo, procuraram pelo presidente,
mas Bento Gonçalves estava em campanha. Foram recebidos
pelo ministro da Fazenda, Domingos José de Almeida,
que ao ouvir a história dos italianos surpreendeu-se
com sua coragem; não podia deixar de aproveitá-los,
incorporando-os novamente ao movimento revolucionário.
Rossetti, culto, dominando o idioma português, foi designado
para redigir O Povo, jornal político e literário
da República Rio-Grandense; Garibaldi, que crescera
tendo o mar por horizonte, foi encaminhado a Camaquã
para auxiliar na construção dos barcos. Nessa
ocasião Bento Gonçalves chegou a Piratini e
avistou-se com Garibaldi:
“Foi então que pela primeira vez vi aquele
valente, gozando alguns dias a sua intimidade. Era realmente
o filho querido da natureza — que lhe havia prodigalizado
tudo o que torna o homem um verdadeiro herói. Bento
Gonçalves teria então sessenta anos. Alto, esbelto,
montava a cavalo [...] com um garbo e agilidade admiráveis.
Naquela posição ninguém o julgaria com
mais de vinte e cinco anos. [...] Fora um dos primeiros a
levantar o grito de guerra, não com vistas de ambição
pessoal, mas como qualquer outro beligerante filho daquele
povo. Na campanha passava como o mais ínfimo habitante
das campinas; isto é, com a carne assada e água
pura. No dia em que nos encontramos pela primeira vez, convidou-me
para o seu banquete frugal; e conversamos com tanta familiaridade
como se fossemos companheiros de infância e iguais em
posição. Com tais dotes naturais e adquiridos,
Bento Gonçalves era o ídolo de seus concidadãos;
porém, coisa estranha, foi quase sempre infeliz nas
empresas guerreiras, o que me faz acreditar que o acaso é
superior ao gênio para os sucessos da guerra e para
a fortuna dos heróis.”7
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Carga de Cavalaria Farroupilha |
Camaquã
A família de Bento Gonçalves possuía
vasta extensão de terra em Camaquã. Ao chegar,
Garibaldi foi conduzido ao estaleiro do Brejo, cuja proprietária,
Antônia, era irmã do líder farroupilha.
O local era antes usado para preparação do charque
e depósito de erva-mate, transformando-se então
no arsenal de marinha dos farrapos.
Lá o italiano encontrou-se com John Griggs, conhecido
como Big John, que diziam ser um padre irlandês nascido
em família rica, que abandonara a vida eclesiástica
para se tornar um homem do mar. Sobre ele corriam várias
histórias.
“Afirmam que ele deixou a vida religiosa por ter
atentado contra a moral e depois, arrependido, converteu-se
à seita dos quakers, que proibia o uso de qualquer
tipo de arma. Por esse motivo, andava sempre com um cajado
de madeira para se defender, manejando-o com grande habilidade;
quando lutava, tomava cuidado para não ferir de morte
os seus adversários. Caso acidentalmente isso viesse
a acontecer, repetia: Accipe ad huc illum, Domine,
in misericordiam tuam. (Recebei-o, Senhor, em Vossa
misericórdia.)”8
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7 GARIBALDI, 1907, p. 71.
8 BENTO, p. 231.
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Garibaldi foi encarregado da construção
de dois lanchões. Rossetti, que se demitira da redação
do jornal O Povo por discordar de várias idéias
publicadas, juntou-se a ele. O trabalho era lento e árduo,
já que todo o material tinha que ser extraído
da região: couro, madeira e ferro para a fabricação
das peças. Garibaldi recorreu a Luigi Carniglia, conhecedor
de construção naval, que em Montevidéu
reuniu vários refugiados italianos, entre eles Edoardo
Mutru, seu antigo companheiro de lutas em Gênova.
“No fim de dois meses a esquadrilha estava pronta.
Cada um dos vasos foi armado com duas peças de bronze;
quarenta negros ou mulatos foram agregados aos trinta europeus,
formando desse modo duas equipagens que compreendiam setenta
homens. Tomei o comando do mais forte, a que pusemos o nome
de Rio-Pardo. John Griggs foi encarregado do segundo, que
se chamou — O Republicano [...]. Começaram então
as nossas correrias pela lagoa dos Patos. Passaram-se alguns
dias sem fazermos mais do que presas insignificantes. Os imperiais
tinham navios de guerra e um barco a vapor. Porém nós
tínhamos a nosso favor os baixios das águas.
A lagoa não era navegável para os grandes barcos,
senão n’uma espécie de canal que seguia
ao longo da sua margem no oriente. No lado oposto sucedia
o contrário, porque o solo era cortado em declive e
nós mesmos víamo-nos às vezes encalhados
antes de tocar na margem. Os bancos de areia estendiam-se
pela lagoa à semelhança dos dentes de um pente
e só havia de bom que esses dentes eram bastante afastados
uns dos outros. Quando éramos forçados a encalhar,
ou os canhões do navio de guerra ou do vapor nos incomodavam,
dizia: — Avante, meus patos, saltemos à água.
E os meus patos caíam n’água e à
força dos braços erguiam o lanchão, transportando-o
para o outro lado do banco de areia.”9
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9 GARIBALDI, 1907, p. 73. Há entre os estudiosos
controvérsias quanto aos nomes dos barcos.
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"O espantoso transporte dos
lanchões", tela de Guido
Mondin |
A caminho de Laguna
Os farroupilhas, otimistas, continuavam as conquistas
e planejavam invadir Santa Catarina, agregando-a
à República Rio-Grandense. Havia outra causa
importante para tomá-la: a barra do Rio Grande, cujo
porto era regulador comercial da Província do Rio Grande
do Sul, e o rio São Gonçalo, que ligava a lagoa
Mirim à lagoa dos Patos e ao estuário do rio
Guaíba, estavam dominados pelos imperiais. Os farroupilhas
controlavam algumas regiões de lagoas e rios navegáveis
ameaçados de conquista por John Grenfell, mercenário
inglês contratado pelo Império, mas não
possuíam um porto, o que era fundamental. A invasão
de Laguna resolveria o problema, pois daria aos revoltosos
a possibilidade de conquistá-lo.
Garibaldi, Big John e companheiros construíram no estaleiro
quatro barcos, e planejaram que dois continuariam realizando
o corso na lagoa dos Patos, chefiados por Zeferino Dutra,
enquanto os outros seriam lançados no oceano para alcançar
Laguna. Mas ocorria um problema quase intransponível:
a barra do Rio Grande, tomada pelos imperiais, impedia que
os barcos na lagoa alcançassem o oceano.
Garibaldi então armou duas imensas carretas, colocando-as
em um terreno em declive, e deslizou sobre elas os barcos;
puxadas por bois, levou-as até as praias do Capivari.
Partiu em 5 de julho de 1839, e depois de percorrer por terra
aproximadamente sessenta quilômetros em terreno arenoso
e salino, chegou às praias, onde durante três
dias reparou as embarcações, e lançou-as
ao mar.
“Esse memorável projeto executado por Garibaldi
— o transporte dos barcos Seival e Farroupilha por terra,
desde a lagoa dos Patos, na foz do Capivari, até as
praias de Tramandaí — tornou-se célebre
não tanto pelo transporte em si, pois nada de novo
nele havia (Fournire e Sorriano, na guerra entre o Brasil
e as Províncias Unidas do Rio da Prata, executaram
façanha idêntica, e os venezianos, em 1439, fizeram
idêntico transporte, mas em maiores proporções,
pois levaram 30 navios, de Revoredo a Torbole), mas pela audácia
do feito, desorientando completamente os imperiais, que o
julgavam perdido pelo bloqueio que lhe faziam no saco do Capivari,
e pela rapidez do transporte de um a outro ponto (nove dias).”10
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10 SPALDING, 1982, pp. 161-162.
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Ao atingirem o mar, desfraldaram a bandeira
da República Rio-Grandense. O barco Seival, comandado
por Big John, de maior porte, navegava na dianteira, seguido
pelo Farroupilha, comandado por Edoardo Mutru, onde
estavam Garibaldi, Carniglia, Starderini, Giovanni e Nadonne.
Na altura do cabo de Santa Marta, em Santa Catarina, o oceano
Atlântico, violento, prenunciou uma tempestade que pouco
depois desabou. O Seival conseguiu atravessá-la sem
que Big John percebesse que o Farroupilha, de tamanho
menor, naufragava. Garibaldi, exímio nadador, vária
vezes mergulhou para salvar os amigos; em vão, porque
não conseguiu vencer o turbilhão das ondas.
Chegando à praia, exausto, encontrou poucos sobreviventes.
“Os seis italianos que me acompanhavam estavam mortos.
Carniglia, Mutru, Starderini, Nadonne e Giovanni [...]. Não
me recordo do nome do sexto. Não obstante, devia me
lembrar de seu nome. Peço perdão à pátria
por havê-lo esquecido. G.G.”11
A República Catarinense
No dia seguinte, a cavalo, Garibaldi partiu ao encontro de
Davi Canabarro e Joaquim Teixeira Nunes, comandante dos lanceiros
negros. O Seival encontrava-se ancorado na lagoa
de Garopaba, com Big John e Rossetti, que souberam do acontecido.
Os farroupilhas invadiram a vila de Laguna. Davi Canabarro,
em 22 de julho de 1839, proclamou a República Catarinense,
e a população, esperançosa, regozijou-se
com os revoltosos. Antônio Sousa Neto, um dos mais conceituados
líderes farroupilhas, homenageou os heróis na
sua ordem do dia:
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11 GARIBALDI, 1907, pp. 84-88.
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“1839, 22 de julho. Tomada da Laguna
por Davi Canabarro. Quartel-general na vila Setembrina, de
agosto de 1839. O comandante-em-chefe do exército,
extasiado de prazer, faz público ao mesmo o brilhante
triunfo que acabam de alcançar as armas republicanas
sobre a horda imperial estacionada na vila da Laguna, triunfo
tanto mais glorioso quanto é seguro, garantindo a completa
regeneração do Estado Catarinense. O dia 22
de julho raiou glorioso no horizonte político daquela
nascente república e seus efeitos serão com
letras indeléveis levados à mais remota posteridade.
O intrépido e perito coronel Davi Canabarro, digno
comandante da divisão libertadora, ao aproximar-se
daquela importante posição, cujo mando estava
confiado ao decrépito Vilas-Boas, menosprezando seus
canhões, mercenárias baionetas e só escudado
no valor dos seus bravos companheiros, não evitou em
carregar-lhe e a deusa da vitória coroou seu esforços!
[...] O general-comandante tributa sinceros encômios
ao cidadão coronel Davi Canabarro, [...] ao bravo tenente-coronel
Joaquim Teixeira Nunes, [...] ao tenente de marinha Lourenço
Valerigini e tenente da mesma, Inácio Bilbao, bem como
ao comandante da esquadrilha capitão-tenente José
Garibaldi [...]. Antônio Neto.”12
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Garibaldi e Anita - tela de Guido Mondin |
Encontro com Anita
Garibaldi registrou em suas Memórias que nunca
havia pensado em casamento. Considerava-se incapaz de ter
família, por prezar a independência e ter paixão
por aventuras. Mas o destino decidiu o contrário. Ao
perder os amigos, embora existisse Rossetti ocupado com a
organização de Laguna, ele se sentia só.
Nesse isolamento encontrou Ana Maria de Jesus Ribeiro ou Ana
Maria Ribeiro da Silva, como alguns historiadores preferem
chamar Anita Garibaldi:
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12 Apud BOITEUX, 1985, pp. 125-127.
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“Eu andava pelo tombadilho do Itaparica,
quando decidi procurar uma mulher que me tirasse daquela insuportável
e tediosa situação. Lancei um olhar às
habitações da Barra, situada na entrada sul
de Laguna. Com a luneta avistei uma jovem e pedi que me transportassem
até ela. Desembarquei e dirigi-me às residências
onde estava o motivo da minha viagem. Não a encontrei,
mas um homem que conheci logo após meu desembarque
convidou-me para tomar café em sua casa. Entramos e
a primeira pessoa que avistei era aquela que eu procurava:
Anita, a mãe dos meus filhos, a companheira da minha
vida, na boa e má sorte, a mulher com a coragem que
eu sempre quis ter. Ambos ficamos estáticos e silenciosos,
olhando-nos um ao outro como duas pessoas que já se
encontraram e tentam reconhecer reminiscências nas fisionomias...
Finalmente cumprimentei-a e disse-lhe em italiano: Tu devi
essere mia. (Você deve ser minha). Fui magnético
na minha insolência e tinha atado naquele momento as
nossas existências, dando um nó que só
a morte poderia desfazer.”13
A reação imperial
A conquista de Laguna amedrontou o Império, que se
articulou para reconquistá-la. Francisco José
Soares de Andréa, português com duvidosa reputação
e conhecido como o carrasco do Pará,
pelas atrocidades cometidas durante a Cabanagem, foi nomeado
presidente do Rio Grande do Sul. Junto com Frederico Mariath,
comandante naval, elaborou planos para retomar Laguna.
Os habitantes, que haviam recebido os farroupilhas com entusiasmo,
mostravam-se descontentes. Temiam Canabarro, que adotava postura
rígida e inflexível. As desavenças com
Rossetti, Garibaldi e outros líderes, que discordavam
de sua conduta, desnorteavam a população e os
próprios farroupilhas. A situação piorou
com o episódio de Imaruí, pequena aldeia próxima
a Laguna, cujos moradores, pesarosos, trocaram a bandeira
revolucionária pela do Império.
Garibaldi recebeu ordem de Canabarro para verificar o que
se passava, acompanhado pelos soldados baderneiros do comandante
farroupilha, que não lhe obedeceram e destruíram
a aldeia sem que o líder italiano pudesse contê-los.
Canabarro, soberbo, ao ordenar aos seus subordinados que destruíssem
Imaruí, contribuiu para a decadência de seu comando
sem que Garibaldi pudesse interferir. Confessou mais tarde:
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13 GARIBALDI, 1888, p. 56.
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“Em lugar de encontrar inimigos, encontramos
aliados, em lugar de sermos combatidos, fomos festejados.
Os habitantes nos trataram como irmãos e libertadores,
título que desgraçadamente não soubemos
justificar enquanto estivemos nessa povoação
amiga.”14
Ao lado de Garibaldi, Anita vivia momentos difíceis, mormente
pela decepção dos seus irmãos, que almejavam para ela uma
situação melhor. Sofria os preconceitos da união com Garibaldi,
mas não retrocedeu, e ao seu lado demonstrou o idealismo e
o heroísmo que a consagrariam na história.
Soares de Andréa, coordenando as forças em Imbituba,
sob o comando naval de Frederico Mariath, atacou Laguna com
uma frota de vinte e dois navios. Investiu contra os farroupilhas,
que tentaram impedir a sua passagem na barra, quando Garibaldi
colocou os barcos em semicírculo, presos entre si por
fortes correntes. Tinham poucas lanchas e cinco navios: Rio
Pardo, Itaparica, Caçapava, Santana e Seival.15
Numa luta desigual, os farroupilhas foram vencidos. Ao pressentir
que estavam perdidos, Garibaldi incendiou os barcos. Durante
todo o conflito, contou com o auxílio de Anita, que
transportou as armas para terra firme, num pequeno barco,
em inúmeras travessias.
Garibaldi, em suas Memórias, e Mariath, em
relatório ao Império, narraram o combate. Embora
em lados opostos, as descrições comprovam o
sangrento confronto e o heroísmo de Garibaldi, que
lutou bravamente:
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14 Apud CABRAL, p. 133.
15 VARELA, 1933, v. 4. p. 448.
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“Era um verdadeiro açougue
de carne humana; andava-se por cima de montões de cadáveres.
O comandante do Itaparica, João Henrique, de Laguna,
estava deitado no meio de dois terços da sua equipagem
com uma bala que lhe tinha feito no meio do peito um buraco,
por onde podia entrar perfeitamente um braço. O pobre
João Griggs tinha, como já disse, o corpo separado
em dois por um tiro de metralha. Fiquei sufocado, à
vista de semelhante espetáculo, e perguntei a mim mesmo
como poderia ter escapado. Num momento uma nuvem de fumo envolveu
os nossos navios e os nossos bravos tiveram ao menos uma sepultura
digna deles. Enquanto tinha cumprido a minha obra de destruição,
Anita, pela sua parte, havia cumprido a sua salvação.
Era noite fechada quando, tendo reunido todos os marinheiros
que haviam escapado, me juntei com a nossa divisão
e nos retiramos para o Rio Grande, seguindo o mesmo caminho
que alguns meses antes tínhamos atravessado com o coração
cheio de esperança e precedidos pela vitória.”16
Mariath escreve:
“O inimigo opôs uma resistência formidável
[...], uma chuva de balas disparadas, quase à queima-roupa,
pela sua infantaria, abrigada por uma cortina de pedra ao
lado da mesma fortaleza, causava-nos um dano terrível
[...]; desorientados alguns práticos, causaram o encalhe
de três das nossas embarcações; o combate
tornou-se então muito caloroso. Garibaldi, seja isto
dito em abono da verdade, desenvolveu nessa ocasião
uma coragem digna de inveja.[...] Não devo deixar desapercebido
o projeto que Garibaldi diz formara de ir ele mesmo incendiar
a esquadrilha imperial e isto quando já estava derrotado.
[...] Se tal coisa empreendesse, talvez não lhe restasse
tempo de escapar-se de um pequeno bote com a sua heroína.
Frederico Mariath.”17
Passo de Santa Vitória, Lajes
e Curitibanos
Garibaldi, Anita e Rossetti seguiram, após a derrota,
a coluna chefiada por Teixeira Nunes. Não aceitavam
a conduta intransigente de Canabarro. Ao passarem por Passo
de Santa Vitória e Lajes, confrontaram-se com os imperiais.
A vitória alcançada alimentou as esperanças
dos corajosos combatentes. Entretanto, pouco depois, em Curitibanos,
ao caírem numa armadilha, Teixeira Nunes e Garibaldi
foram obrigados, quando acuados num matão, a fugir
sem poder regressar ao local onde lutavam.
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16 GARIBALDI, 1907, pp. 100-102.
17 MARIATH, pp. 175-178. (Carta original publicada no Correio
Mercantil do Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 1860)
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Mais uma vez Anita demonstrou sua coragem quando,
tomando conta das armas, lutou com destemor ao ser atacada.
Presa e levada ao coronel Antônio Melo de Albuquerque,
apelidado Melo Manso, respondeu às perguntas com altivez;
poucos dias depois fugiu pela floresta, atravessando o rio
Canoas, e encontrou Garibaldi em Lajes.
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"Rio Pardo" segundo Edoardo Matania |
Os últimos combates
Após a perda de Laguna começou o declínio
farroupilha. Os líderes desentendiam-se constantemente,
sem que Bento Gonçalves pudesse contê-los. As
tentativas de reconciliação com o Império,
por sua vez, não chegavam a bom termo, provocando descontentamentos
e a suspeita de traição. As derrotas militares
em Taquari e São José do Norte foram fatais
para o movimento revolucionário.
Em Taquari, Garibaldi, Antônio Sousa Neto, Canabarro,
Teixeira Nunes, Corte Real e Domingos Crescêncio prepararam-se
para enfrentar as tropas legalistas chefiadas por Manuel Jorge
Rodrigues, significativamente superiores. Aguardavam apenas
a ordem de Bento Gonçalves para atacar. Ao fazê-lo,
após hesitação, Manuel Jorge já
se afastara, perdendo os farroupilhas a oportunidade de vencer
pela posição privilegiada que ocupavam. No dia
seguinte, ao iniciarem a contenda, o desânimo atingira
os revoltosos e o resultado final foi considerado incerto.
Garibaldi deixou nas Memórias:
“O resultado foi para nós péssimo, porque
não sabíamos como reparar as faltas que havia
sofrido a infantaria, arma em que o inimigo nos era muito
superior e se achava todos os dias recebendo novos reforços.
[...] Uma operação concebida neste tempo pelo
general teria podido pôr-nos em excelente posição,
se a fortuna tivesse, como devia, secundado os esforços
deste homem tão superior e tão desgraçado.”18
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18 GARIBALDI, 1907, pp. 114-119.
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A posição estratégica de
São José do Norte, onde havia um comércio
razoável, capaz de abastecer as tropas necessitadas,
era de suma importância para os farroupilhas. O plano
traçado para invadi-la consistia em tomar o local de
surpresa. Após conquistá-la, Garibaldi transportaria
parte das tropas para a outra margem da lagoa, nas embarcações
que ele conquistasse, e obstruiria a única passagem
para a entrada dos navios legalistas. Bloquearia, dessa maneira,
a esquadra imperial vinda de Porto Alegre. Garibaldi e Rossetti
entusiasmaram-se com o plano, pois sempre alertavam para a
necessidade de terem um porto.
A contenda foi quase um corpo-a-corpo, com inúmeros
mortos que se espalhavam pela cidade. Os farroupilhas venciam
a batalha. Bento Gonçalves ordenou aos imperiais, reunidos
no quartel local à espera de reforços, que se
rendessem. Ao perguntar aos companheiros qual o meio mais
rápido para que os adversários saíssem
do refúgio, ouviu que seria através de um incêndio,
que poderia matar também muitos habitantes. Respondeu
que por essa forma não queria a vitória, e deu
ordem para a retirada. A medida foi severamente criticada
por soldados e líderes que o acompanhavam.
Na opinião de Garibaldi, Bento Gonçalves tomou
essa atitude baseada no péssimo desempenho das tropas,
que saqueavam indiscriminadamente a vila, embebedando-se e
dispersando-se.
“O mais glorioso dos triunfos estava mudado, ao
meio-dia, na mais vergonhosa retirada, e os verdadeiros amigos
da liberdade choravam de desesperação. A nossa
perda, comparativamente à nossa situação,
foi enorme. Desde este momento a nossa infantaria não
foi senão um esqueleto; enquanto que a pouca cavalaria
que tinha vindo na expedição serviu para proteger
a retirada.”19
Garibaldi partiu para uma propriedade abandonada, situada
às margens da lagoa dos Patos, que pertencia ao conde
de São Simão, legalista; sua missão era
construir canoas usando troncos de árvores, com as
quais abririam comunicações entre as paragens
da lagoa. Mas as árvores prometidas não chegaram,
e ele ocupou o tempo, pois odiava o ócio, domando cavalos.
Acompanhava o desenrolar dos acontecimentos à distância,
ao lado de Anita, que estava grávida.
Em 16 de setembro de 1840 nasceu um menino, a quem chamaram
de Menotti, em homenagem ao revolucionário Ciro Menotti,
que dera a vida pela causa da unificação da
Itália. Sem qualquer proteção para Anita
e o menino, Garibaldi foi a Setembrina para obter algum recurso
entre os amigos italianos que pudessem ajudá-lo.
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19 GARIBALDI, 1907, pp. 120-121.
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Ao chegar, encontrou Luigi Rossetti frustrado
com os rumos da revolução. Identificava-se com
as proposições de paz apresentadas por Bento
Gonçalves, e ponderava que a luta entre irmãos
deveria terminar o mais rápido possível. Mostrou
a correspondência mantida com líderes legalistas,
onde expunha seus sentimentos e defendia a necessidade de
um acordo para o término das contendas. Garibaldi concordou
com as ponderações do amigo, mas precisava partir.
Com o auxílio desejado, retornou ao encontro da mulher
e do filho, que durante esse período foram atacados
pelo legalista Francisco Pedro de Abreu, o Moringue, salvando-se
graças à coragem e determinação
de Anita.
Garibaldi sentiu-se penalizado pela situação
dos farroupilhas. Bento Gonçalves, que se estabelecera
provisoriamente em São Gabriel, então capital
da República Rio-Grandense, enfrentava o descontentamento
do exército e dos seus principais líderes. Desde
que encontrara Rossetti, Garibaldi refletia sobre seu futuro:
os ideais farroupilhas dificilmente seriam alcançados;
faltavam armas e alimentos; os amigos italianos estavam mortos;
e havia Anita e Menotti, que estavam vivos por milagre.
A retirada
Os acontecimentos se precipitavam, reforçando a decisão
a ser tomada. Rossetti, que acampara em Setembrina após
o ataque chefiado por Moringue, foi morto. Garibaldi, Anita
e Menotti, nas fileiras comandadas por Davi Canabarro, marcharam
em retirada até alcançar São Gabriel.
“Esta retirada empreendida na estação
invernosa, por um lugar montanhoso e debaixo de uma chuva
incessante, foi a mais terrível e mais desastrosa que
tenho visto. Conduzimos por precaução algumas
vacas, sabendo perfeitamente que no caminho que tínhamos
a atravessar não encontraríamos comestíveis
alguns. [...] Anita, durante a caminhada, sofreu toda a casta
de privações e incômodos com um estoicismo
e uma coragem admiráveis. É necessário
ter algum conhecimento das florestas desta parte do Brasil,
para fazer idéia das privações sofridas
por uma porção de homens sem meios de transporte
e tendo unicamente por recurso o laço, arma muito útil
nas planícies cobertas de animais, mas perfeitamente
inútil nessas espessas florestas, abundantes em tigres
e leões. Para a nossa desgraça ser ainda maior,
os rios muito próximos uns dos outros nestas florestas
virgens engrossavam cada vez mais. A horrível chuva
que nos perseguia não cessava de cair, acontecendo
muitas vezes que uma parte dos nossos soldados se achavam
entre duas correntes de água e aí ficavam privados
de todo alimento, morrendo muitos de fome e principalmente
as mulheres e crianças, que não podiam suportar
tanto as privações. Era uma carnificina mais
horrível do que a de uma sanguinolenta batalha. [...]
De doze mulas e cavalos com que tinha entrado na floresta
e que eram destinadas ao meu serviço, não tinha
podido salvar mais que duas mulas e dois cavalos, os demais
tinham morrido de fome ou de fadiga. [...] Enviei Anita adiante
com um criado e meu filho, a fim de que ele procurasse o fim
dessa interminável floresta e algum alimento. Os dois
cavalos que eu havia deixado a Anita e que ela montava simultaneamente,
foi que nos salvaram. Ela achou o fim da floresta e aí
encontrou um piquete dos meus bravos soldados assentados a
um belo fogo, o que não era comum pelo tempo que fazia.
Os meus companheiros, que por felicidade tinham conservado
alguns vestidos de lã, embrulharam neles a criança,
aquecendo-a e chamando-a por este modo à vida, quando
já a pobre mãe começava a perder todas
as esperanças. Mas ainda não é tudo:
esses excelentes rapazes começaram então a procurar
com uma grande solicitude alguns alimentos, que eles não
tinham procurado para si, mas que agora procuravam por minha
causa. O que dentre todos prestou à minha esposa e
filho os primeiros e mais eficazes socorros foi Mangio: que
o seu nome seja abençoado. Encontrei minha mulher e
filho e soube então o que os meus companheiros tinham
feito por causa dela. Nove dias depois da nossa entrada na
floresta conseguimos sair! Poucos oficiais tinham conseguido
salvar os seus cavalos. [...] As tempestades pareciam circunscritas
à floresta. Apenas saímos dela e nos aproximamos
de Cima da Serra e de Vacaria que o bom tempo começou,
caindo então em nosso poder alguns bois, que indenizando-nos
do nosso longo jejum nos fizeram esquecer a fadiga, a fome
e a chuva.[...].” 20
As tropas chegaram a São Gabriel, onde Anita e Garibaldi
se instalaram. Sua participação no movimento
farroupilha chegava ao fim. As discussões entre os
oficiais aumentavam, pois sabiam não ser possível
prolongar a luta por mais tempo. Havia a hipótese de
se unirem ao ditador argentino Juan Manuel Rosas, mas isto
Bento Gonçalves jamais aceitou, atestando que apenas
mantinha relações com os orientais sem desejar
associar-se a eles. Garibaldi apresentou ao líder farroupilha
seus planos de partir.
Há controvérsias quanto ao que resolveram. Alfredo
Varela, na obra A história da Grande Revolução,
admite que Garibaldi iria a Montevidéu levar fundos
para cobrir despesas urgentes de fornecimento de armas e víveres,
e que nunca retornou ao Brasil porque existia um relacionamento
entre rio-grandenses e orientais. Garibaldi nada mencionou
sobre o diálogo mantido com Bento Gonçalves,
e apenas escreveu: “Decidi então ir a Montevidéu,
temporariamente, e pedi, pois, licença ao presidente
e que me concedesse uma pequena tropa de bovinos para pagar
as despesas.”21
Rumo ao Uruguai
Garibaldi e Anita prepararam-se para a partida, desejosos
de fazê-lo antes do inverno. Como os corsários
não recebiam soldo, o que se constata pela penúria
em que viviam, Domingos José de Almeida, ministro da
Fazenda, concordou que Garibaldi reunisse novecentas cabeças
de gado, a título de auxílio para a viagem.
A família partiu acompanhada de peões que conduziam
o gado. Caminhavam com cuidado pelos pampas, pois sabiam que
poderiam encontrar tropas legalistas e ser atacados. A marcha
monótona e exaustiva decepcionou Garibaldi. Peão
improvisado, constatava a cada dia a diminuição
da boiada, que se perdia ou morria pelo caminho; o roubo das
reses, a fuga dos peões e as churrasqueadas para se
alimentarem também reduziam o número de cabeças.
Admitiu ter errado ao conduzir animais recolhidos ao acaso,
onde reses xucras não tinham condições
de fazer caminhada forçada. As chuvas torrenciais fizeram
com que o rio Negro transbordasse, ocasionando a perda de
muitos animais. Das novecentas cabeças restaram apenas
quinhentas, e sem alternativas resolveram sacrificá-las,
retirando o couro e deixando a carne para ser devorada pelos
corvos. Depois de pagar os peões, sobraram trezentos
couros.
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21 GARIBALDI, 1888, p. 95.
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Anita seguia em silêncio. Acostumara-se
ao sacrifício das caminhadas, e, carregando Menotti
ao lado de Garibaldi, sentia-se feliz e segura.
“A minha Anita era o meu tesouro, amante como eu da
sagrada causa dos povos e de uma vida aventureira. Para ela,
as batalhas eram uma diversão, e o desconforto da vida
do campo, um passatempo. Portanto, não nos importávamos
com o que pudesse acontecer. O futuro seria sempre promissor
e quanto mais selvagens fossem os desertos infindáveis
americanos, mais agradáveis e mais bonitos nos pareciam.”22
Em Montevidéu
Em meados de 1841, Garibaldi, Anita e Menotti alcançaram
Montevidéu, onde foram acolhidos com amizade e carinho
pelos italianos. Hospedaram-se na residência de Napoleone
Castelini, antigo carbonário que lutara na Revolução
Farroupilha. Tornara-se um comerciante de sucesso e protegia
os refugiados na América do Sul. Republicano corajoso,
sem medo de se expor aos perigos inerentes à situação,
colaborava no comércio de gado entre uruguaios e farroupilhas,
vendendo-o ou permutando-o por armas.
Sem recursos, Garibaldi começou a lecionar Matemática,
História e Caligrafia no colégio de Paolo Semidei,
ex-sacerdote. Filiou-se à loja maçônica
italiana ligada ao Grande Oriente de Nápoles, e posteriormente
à loja maçônica francesa Amis de la Patrie,
associada ao Grande Oriente do Rio Grande.
Apesar da família e dos amigos, Garibaldi não
vivia feliz, pois estava afastado das lutas ideológicas.
Como necessitasse aumentar sua renda, trabalhou também
como corretor de cargas para navios, o que lhe proporcionava
convívio com os italianos que chegavam ao porto. Passou
a realizar, na pequena casa que alugara, reuniões freqüentadas
não só pelos italianos, como os irmãos
Giacomo e Paolo Antonini, Giovanni Battista Cuneo, Francesco
Anzani e os irmãos Rizzo, mas também por José
Rivera Indarte, intelectual, e Bartolomeu Mitre, militar,
historiador e humanista.
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22 GARIBALDI, 1888, p. 65.
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Nessa época, d. Pedro II concedeu anistia
a todos os rebeldes que depusessem armas. Como a situação
política do Uruguai era preocupante, Garibaldi procurou
o encarregado dos negócios do Brasil, José Dias
da Cruz Lima, para regularizar sua situação.
Cruz Lima informou ao governo brasileiro que acreditava ser
Garibaldi perigoso, pois comandara a marinha dos revolucionários
em Laguna e solicitava, para iniciar um comércio pelo
Prata, permissão para que o comandante das forças
navais não o atacasse. Acreditava que o melhor era
dar-lhe anistia, pois dessa forma evitaria que ele retornasse
ao Rio Grande do Sul para lutar. Garibaldi, informado, assinou
um documento reNúnciando a qualquer hostilidade contra
o Império e às lutas da Província do
Rio Grande do Sul, comprometendo-se a exercer a atividade
comercial iniciada.
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Monumento a Anita, de Mario Rutelli
(1931), em Roma |
O casamento
Ao encontrar-se com Garibaldi, Anita estava casada com Manuel
Duarte de Aguiar, pretendente escolhido por sua mãe.
Dez anos mais velho, introspectivo, não combinava com
o temperamento vibrante e irrequieto de Anita. Separaram-se
quando, ao eclodir a Revolução Farroupilha,
ele se alistou nas forças imperiais. Era comum na época
as esposas acompanharem os soldados, mas não se tem
conhecimento da razão por que Manuel não o fez.
Anita, portanto, estava só quando conheceu Garibaldi.
Sem jamais saberem do paradeiro de Manuel Aguiar, que julgavam
morto em combate, Garibaldi e Anita resolveram regularizar
sua situação matrimonial e legitimar o filho.
O casamento, realizado em Montevidéu, em 26 de março
de 1842, cumpriu todas as formalidades de praxe, conforme
se vê no documento encontrado por Emílio Curatolo
nos arquivos de Garibaldi:
“Certifico yo, infrascrito cura rector de esta paroquia
de San Francisco de Assisi, en Montevideo, quae en libro primiero
de casados de esta Paroquia, a folias veinti y seinte, a la
svuelta està la partita en del tenor seguiente: “El
dia veinte y seis marzo de mil ochocientos quaranta y dos,
el presbitero don Zenon Aspiazu, mi lugarteniente en esta
parroquia de San Francisco de Assisi, en Montevideo, autorizò
el matrimonio, que in facie ecclesiae contrajo, por palabras
de presente, don Josè Domingo Garibaldi, natural de
Italia, hijo legitimo de don Domingo Garibaldi, y de doña
Rosa Raimunda, con doña Anna Maria de Jesus, natural
de la Laguna, en el Brasil, hija legitima de don Benito Riveira
y de doña Maria Antônia de Jesus; habiendose
leído una sola proclama por habere dispensado las otras
dos, practicadas las demas diligencias que previene el derecho
canonico. No recibieros las benediciones nupciales, siendo
testigos de su otorgamiento don Pablo Semidei y doña
Feliciana Garcia Billegas, lo que, per verdade, firmo. Lorenzo
A. Fernandez. Està conforme al original, que me remito
en caso necesario y para los fines que convenga. Montevideo,
16 de junio de 1842. Lorenzo A. Fernandez.”23
O casal teve mais três filhos em Montevidéu:
Rosa ou Rosita, nascida em 1843 e morta com dezoito meses,
Teresita, nascida em 1845, e Riccioti, nascido em 1847.
...